Batemos um papo com o contador e advogado tributarista, presidente do CRC-CE, sobre os aspectos práticos da Reforma Tributária. A entrevista aconteceu em setembro de 2023.
A reforma tributária do Brasil é um assunto em voga e que vem sendo discutido há um bom tempo, mais de 4 décadas para sermos mais exato. Por isso nos pareceu propício falar sobre os aspectos práticos dessa mudança.
O conteúdo abaixo foi produzido a partir de um Aulão com Fred Amaral, CEO da e-Auditoria, e Fellipe Guerra, presidente do CRC-CE, transmitida em setembro de 2023.
Aspectos práticos da Reforma Tributária
A Reforma Tributária foi aprovada pelo Congresso Nacional em dezembro de 2023, mas está prevista para começar em 2026 e terminar em 2078. Será um processo de transição gradual para que as empresas possam ir se adaptando aos poucos.
Seu objetivo principal é simplificar o sistema tributário do país, composto por diversos tributos nos âmbitos federal, estadual e municipal. Eis alguns pontos abordados na reforma tributária:
- Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2019: focada na simplificação tributária, a PEC propõe a substituição de cinco tributos atuais (PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS) por um único Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). A ideia é eliminar a cumulatividade, simplificar a arrecadação e melhorar a transparência;
- Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 110/2019: similar à PEC 45, a PEC 110 também visa simplificar o sistema tributário com a criação de um IBS e de um Imposto Seletivo. No entanto, tem diferenças importantes na alocação de receitas entre estados e municípios;
- Reforma Tributária Fatiada: essa abordagem propõe dividir a reforma em várias etapas. A primeira etapa foi o envio de um projeto de lei para unificar PIS e Cofins, criando a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). A intenção é que mudanças adicionais sejam implementadas posteriormente, facilitando a aprovação política.
Base de cálculo ampla e não cumulatividade
Fellipe Guerra explicou a base de cálculo ampla como uma proposta para uniformizar a tributação entre vendas de mercadorias e prestação de serviços, algo comum mundialmente. Essa abordagem busca simplificar a tributação e reduzir conflitos, integrando mercadorias, serviços e produção sob um mesmo regime tributário.
Sobre não cumulatividade plena, Guerra falou que essa modalidade permite compensações automáticas de débitos e créditos, visando tributar apenas o valor agregado das operações. Inclusive, ele destacou diferentes tipos de não cumulatividade que já existem, como o IPI, ICMS, PIS e COFINS, cada um com suas peculiaridades e impactos.
A complexidade da não cumulatividade se evidencia ainda mais quando abordada no contexto do Simples Nacional. Por exemplo, no IPI, a não cumulatividade é física, exigindo a incorporação do produto ao bem produzido para gerar crédito. Já no ICMS, trata-se de confrontar tributo contra tributo, com créditos tomados apenas sobre valores efetivamente destacados em documentos.
Potenciais efeitos da reforma no Simples Nacional
Outro aspecto prático da reforma tributária é a proposta para que as empresas optantes pelo Simples Nacional continuem com o regime único de recolhimento. Com isso, elas teriam restrições significativas quanto à tomada de créditos. Essa mudança não afeta diretamente as empresas do Simples, mas impacta as empresas que negociam com elas, especialmente aquelas tributadas pelo lucro real.
Se a reforma for aprovada conforme proposto, empresas de lucro real não poderão mais tomar créditos sobre compras realizadas de empresas do Simples Nacional, a menos que esses créditos sejam explícitos no DAIS. Este aspecto pode reconfigurar significativamente as interações entre empresas de diferentes regimes tributários, afetando a dinâmica de mercado e possivelmente aumentando a litigiosidade no setor.
A reforma propõe que as empresas do Simples Nacional possam optar por recolher IBS e CBS fora desse regime para poderem transferir créditos integralmente para seus clientes. Isso pode mitigar parte do impacto negativo, mas Guerra criticou a medida, argumentando que isso contraria a essência do Simples Nacional, que deveria garantir um tratamento tributário favorecido e diferenciado. Se uma empresa do Simples escolher essa opção, ela perderá essas vantagens e passará a enfrentar as obrigações de empresas regulares, minando o propósito de simplificação que o Simples deveria oferecer.
A proposta da reforma tributária também inclui a implementação de um IVA Dual, consistindo no IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) e CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), além de um imposto seletivo de caráter extra fiscal. Um ponto de bastante debate é o Artigo 19 da PEC, que sugere uma contribuição estadual sobre produtos semielaborados de produção própria, gerando controvérsias especialmente no Senado, com expectativas de que tal proposta não prospere.
Desafios tributários para prestadores de serviço
Na conversa com Fred Amaral, Fellipe Guerra também abordou a preocupação crescente sobre o impacto da reforma tributária nos prestadores de serviços. Citou especialmente aqueles que operam sob profissões regulamentadas, como contadores, advogados, engenheiros e médicos. Estes profissionais enfrentam um potencial aumento significativo da carga tributária, que pode ir de uma taxa combinada de cerca de 8,65% para até 28% devido à nova estrutura proposta.
O principal desafio é que os serviços, ao contrário das indústrias, têm poucos insumos que geram créditos tributários, com a folha de pagamento sendo um custo significativo que, no entanto, não gera créditos. Por isso, Guerra destacou que, enquanto a indústria pode ver uma redução em sua carga tributária, os prestadores de serviços podem não ter a mesma sorte, devido à natureza de suas despesas e à falta de insumos creditáveis.
A discussão destacou ainda a importância de uma tributação diferenciada para profissões regulamentadas, como médicos, engenheiros e contadores. Nesses casos, a natureza do trabalho não permite a escalabilidade e os principais custos (como salários) não geram créditos tributários.
Sistema de split payment e implicações para o comércio
Split payment é uma abordagem tecnológica de pagamento que divide automaticamente o valor do tributo no momento da transação, destinando diretamente a parte do fisco, sem passar pelo fornecedor. Essa sistemática busca simplificar a arrecadação tributária, mas traz desafios significativos, especialmente em termos de fluxo de caixa para os fornecedores e a necessidade de pedidos de restituição quando há créditos tributários a serem recuperados.
Esse é um dos aspectos práticos da reforma tributária que preocupa Guerra, especialmente quanto ao impacto nas vendas a prazo e na visibilidade dos tributos. Ele destacou que a transparência da carga tributária pode ser impopular e influenciar o comportamento de compra. Ou seja, isso é especialmente relevante no Brasil, onde a percepção da tributação frequentemente não corresponde à realidade do quanto se paga.
Comparou, inclusive, a cultura tributária no Brasil e com práticas em outros países, como o Canadá, onde a reforma tributária visou aumentar a transparência e estimular os cidadãos a compreenderem e questionarem seus tributos. No Brasil, há uma tentativa similar de aumentar a transparência e a educação fiscal, mas enfrenta-se o desafio da resistência cultural à tributação.
Aspectos práticos da Reforma Tributária para contadores
Como profissional da contabilidade, Fellipe Guerra vê um cenário promissor: a reforma pode revitalizar a profissão. Ele enfatizou isso, destacando que ela é uma fonte rica de informações críticas para a tomada de decisões nas empresas. Com a reforma tributária, a análise de cenários tributários se tornará essencial para todas as empresas, independentemente de seu tamanho ou regime de tributação, e essa talvez seja o principal aspecto prático da reforma tributária.
Guerra prevê que as habilidades do contador para fornecer insights estratégicos se tornarão ainda mais valiosas. Por isso, ele não será apenas um calculador de impostos, mas um estrategista capaz de orientar decisões de negócios. E embora a reforma tributária represente desafios significativos, ela também oferece oportunidades substanciais para aqueles que estão dispostos.
A transição não será imediata, como mencionamos no início, mas é preciso se preparar.